Base de Caçadores

— Certo. — confirmei seu pedido de que eu mesma escolhesse o vestido. Peguei alguns deles pelos cabides e segurei na frente de Alyssa, avaliando-os. Repeti esse processo algumas vezes, até encontrar um que ficasse realmente bom nela. E, desta forma, encontrei um encantador vestido curto (médio, no meu caso) da cor lilás. Além de belíssimo, combinava muito com ela. Eu nem mesmo recordava-me de tal peça. Após segurá-lo na frente de Alyssa por um tempo, analisando completamente, virei-o, desta vez mostrando a frente para que ela pudesse ver. — O que acha desse aqui? — perguntei, séria.

Assim que Lyanna pegou o vestido e me mostrou, me bateu uma certa lembrança, sim... Eu havia ganhado um vestido igual aquele quando eu era criança, de meu irmão. Ah, isto era tão bom, lembrar de quando eu ainda vivia com minha "família" — por mais que apenas meu irmão tenha cuidado de mim —, sentia muita nostalgia disso.

— Está perfeito! — dei um sorriso, pegando o vestido — Muito obrigada!

Sentei-me em minha cama, enquanto analisava atentamente o vestido. Sim, era idêntico ao vestido que eu havia ganhado. Abaixo do peito, estava formando um laço por uma fita da mesma cor que o vestido, porém, claro. Na parte de cima, havia um decote no meio, tampados por algumas fitas entrelaçadas - que estavam ligadas ao laço  -, em direção ao pescoço até as costas. A parte de baixo do vestido era em babados.

"Quanto tempo que não visto vestidos como estes..." sussurrei à mim mesma, por mais que teria sido alto; Lyanna com certeza deveria ter escutado, por mais que não soubesse ainda que eu sou de uma família nobre. Levantei-me e me troquei, o vestido estava um pouco apertado para mim e coloquei minhas meias, por mais que estejam um pouco desfiadas graças a luta, dava para esconder um pouco isso. Resolvi ficar sem calçado, por enquanto, já que a casa já estava limpa mesmo.

Voltei até ao banheiro, vendo o que eu poderia fazer com o meu cabelo, já que, minha presilha que ficava na parte mais rebelde de minha franja estava toda quebrada, deveria deixar ele desse jeito mesmo. Deixei meu cabelo em uma trança de lado, peguei uma fita e amarrei no final.

Sai do banheiro, e fui em minha cama, me jogando nela. Dei um grande suspiro, estava muito cansada. Iria dar um pequeno cochilo, já que o pessoal não havia chegado e não tinha nada para fazer.  

Minha companheira aparentou ter gostado bastante do vestido que escolhi. Ainda bem. Ela observou-o completamente, com um olhar diferente do normal. Tive a impressão de tê-la ouvido sussurrar algo como "Não visto vestidos como esses...", ou melhor, que fazia um tempo desde que ela não vestia. Estranho, não sabia que ela já havia trajado algo assim antes de nos conhecermos. Para ser sincera, eu não sei muito a respeito da Alyssa daquela época, não que eu me importe, na verdade. É claro que eu me preocupo com ela, mas não ligo de saber ou não sobre seu passado. Além disso, é evidente que não sou o tipo de pessoa que tem interesse no que uma pessoa fez ou deixou de fazer em dias distantes.

Ela vestiu a peça, e então foi até o banheiro. Voltou logo em seguida, arrumada. Devo admitir, Alyssa estava realmente bonita. Os dois quase-homens do nosso grupo talvez ficassem inquietos diante dela, quem sabe. Ainda que, por algum motivo, sinto que algo assim viria mais do orelhudo do que do albino. Bem, tanto faz.

Dirigi-me até o banheiro, onde despi-me para finalmente tomar meu merecido banho, deixando minhas roupas largadas no chão. Porém, no momento em que a água entrou em contato com minha ferida, senti uma terrível ardência. Aquilo me pegou desprevenida, não achei que seria tão agonizante. Acabei por deixar escapar um gemido de dor, mas fui capaz de conter os que viriam em seguida. Era de meu conhecimento que higienizar o machucado seria o mais correto, e embora isso parecesse bem simples e eu já tenha enfrentado situações semelhantes, esse com certeza foi o pior dos meus cortes nesses três anos.

Finalizando o banho, passei alguns dos meus perfumes, cremes, e o que mais tivesse lá. Queria esquecer completamente a sensação de ter ficado repleta de sangue, pois minha aversão a isso era enorme. Não chega a ser hemofobia, mas detesto sangue desde aquele dia. Ter visto aquela quantidade imensa de rubro saindo da minha mãe foi o suficiente para uma vida inteira, portanto, eu evitaria situações assim o máximo possível. Porém, talvez eu tivesse exagerado um pouco, pois aquele cheiro híbrido de flores e frutas estava bastante notável. Não que eu me incomodasse, afinal, era um ótimo aroma, mas não queria que os outros reparassem muito nisso. Além de tudo, me lembrava um pouco dos tempos como princesa, com perfumes e loções luxuosas.

Terminando o que tinha para fazer, me enrolei em minha toalha e retornei ao quarto. Alyssa estava tirando uma soneca, carregando uma expressão tranquila e serena no rosto. Era de se esperar, depois de ter passado tanto tempo sem dormir. Abri o armário, e em seguida selecionei as peças que eu usaria: um belo vestido negro de mangas compridas e gola alta, com uma abertura em "V" (de cabeça para baixo) na parte da saia, exibindo um vestido branco por baixo; meia-calça preta e botas curtas. Joguei a toalha em minha cama, e me vesti rapidamente. Retornei ao banheiro, onde sequei e arrumei devidamente meus longos cabelos loiros, deixando-os soltos, mas com um laço preto atrás ornamentando.

Finalizando isto, sentei em minha cama, relaxando um pouco, ainda que sem deitar-me. Parei um pouco para refletir sobre o dia de hoje, e o que faria a seguir. As coisas vinham se complicando cada vez mais, embora eu tivesse uma sincera esperança de que tudo apenas se ajeitaria com o tempo. Provavelmente os outros de nosso grupo chegariam em breve, com tudo resolvido. Sim, eu não deveria estar me preocupando com algo assim. Por mais difícil que fosse para mim confiar nos outros e só esperar que dessem um jeito na situação, eu deveria me conter. Afinal, nada de muito ruim poderia realmente acontecer, certo?

Andávamos em direção a base quando o loiro veio falar comigo, perguntando meu nome dizendo que era melhor do que pensar em mim como "aquela menina loira". Fiquei hesitante, não gostava de dizer meu nome, não havia dito nem a Lyanna, Alyssa e Yuusha, não consigo me ver contanto meu verdadeiro nome pra alguém que eu mal conversei.

-Hum... - Olhei pra ele, segurando minhas mãos juntas nas minhas costas e ficando numa postura reta. - Chame-me de Nightingale, por hora. Ou apenas de Night, parece que esse apelido deu certo. - Olhei em frente, e já conseguia ver a base de longe. - Minha vez de perguntar seu nome, rapaz. Será que eu poderia? - Sempre costumei ser bastante formal quando converso com pessoas que não tenho muita intimidade.

Olhei para trás e vi Yuusha com Ragil, que estava com Maxim dormindo nas costas, e a índia, eles pareciam normais apesar de Ragil estar meio machucada ainda, ela parecia um touro de tão resistente. Continuei seguindo caminho e conversando com o ladrão que quase matei mais cedo, o que parece ser algo normal agora sabe? Virar amiga de gente que quase matei, simpatia é tudo na vida.

O garoto de cabelos brancos veio oferecer-me ajuda. Pelo amor de Deus... Ele acha mesmo que preciso de alguém que sirva de carregador para mim? Oh, me poupe. Mas, como aquele foi um ato cortês e gentil, decidi não respondê-lo tão rudemente quanto costumo responder as pessoas, apesar de que minha vontade mandava-me fazer o contrário.

— Aprecio o gesto, mas não há a necessidade disso. Se, por um raríssimo acaso do destino, eu precise de sua assistência, tenha certeza de que a solicitarei — falei, com um tom sério na voz.

Estranhei o fato de que, tendo se passado vários minutos, aquele pirralho não havia dito mais nada. Não falei coisa alguma até sentir alguma coisa quente e molhada no meu ombro, e quase dei um berro ao ver que Maxim babara litros no meu casaco enquanto cochilava.

— MOLEQUE, EU VOU TE ESTRIPAR... — cerrei os dentes enquanto esbravejava, me controlando para não atirá-lo no chão e chutá-lo até a morte. Consegui suportar a raiva e não berrei para não acordá-lo, já que, apesar de não ter feito praticamente merda nenhuma enquanto lutávamos, só estar no meio daquela bagunça já o fez cansar-se.

Chegando à base, me aproximei da entrada e coloquei Maxim encostado à rampa de pedra que circundava o local. Tenho que admitir que aquela moradia era exatamente o tipo de lugar que me agradava; simples, porém tendo absolutamente tudo o que se precisa para viver. Se eu fosse uma pessoa que costuma permanecer em um local só, com certeza iria me prover de uma construção como aquela, mas, como eu sempre digo, eu faço do próprio mundo minha casa.

— É, até que não é péssimo — "elogiei", botando as mãos na cintura e olhando-a mais um pouco. Maxim caiu para o lado, parecendo estar morto, mas não dei importância. Acho que era um jeito mais confortável para ele dormir...

Ragil apesar de recusar qualquer ajuda, respondeu-me gentilmente. Apesar de tudo, estava mais uma vez feliz por me sentir que nossa amizade estava um pouco mais forte. Acabei continuando por ali mesmo, pensando sobre Magnus e em como Lyanna ficaria brava por não termos conseguido obter nenhuma sequer informação sobre ele e suas ações. Talvez tivéssemos que retornar a taberna no dia seguinte.

Enquanto caminhávamos, Luna tentou iniciar alguma conversação. Percebi desde nossa ultima conversa que ela parecia confusa sobre si mesma, e tudo que havia acontecido com ela mesma. — Me desculpe Luna, mas não me lembro de te-la chamado por algo além de Luna. Sempre pensei que seu nome fosse Lunairetic.  — Disse enquanto questionava à mim mesmo, talvez tivesse perdido a lembrança de seu nome junto a perda de minha família alguns anos atrás.

[...]

Pouco tempo depois, todos já estávamos perante à base. Tomei a iniciativa de bater na porta. Enquanto isto Ragil colocara Maxim no elevado de asfalto que havia antes da entrada. Mesmo após alguns segundos ninguém nos atendera. Será que poderia ter ocorrido algo às meninas? Tendo isto em mente, abri a porta lentamente enquanto anunciava pedindo licença. Logo em seguida retirei meus sapatos e entrei na base, procurando primeiramente pelas duas, que estavam cochilando em seus quartos. Esbanjei um sutil sorriso, o dia realmente fora longo e todos já estavam cansados.

No mesmo momento, pude sentir a presença de um aroma extremamente convidativo. Comida! Lyanna parecia ter deixado a refeição pronta para todos, porém tinha extremo receio de me deliciar sem permissão. Me dirigi de volta ao quarto e logo após cobrir Alyssa que estava deitada de uma maneira que à deixaria incomoda mais tarde, me sentaria em alguma região do quarto na esperança de que em alguma hora Lyanna acorda-se.

Despertei. Ainda estava sentada em minha cama, com as costas apoiadas na parede, imóvel e sem abrir os olhos, desnorteada. Não tinha vontade alguma de sair dali, dada minha preguiça, mesmo que a posição em que eu estava dormindo dissesse o contrário. A primeira coisa que notei foi o cheiro de flores, frutos e por aí vai. Um aroma bastante nostálgico. Se bem me lembro, ele era meu. Sim, eu havia exagerado nos perfumes e cremes. A segunda, pelo o que pude ouvir, era que havia uma certa movimentação na casa. Abri vagarosamente minhas pálpebras, deixando-as apenas semi-abertas. Lá estava Yuusha, sentado num lugar próximo. Ah, é verdade, eu estava esperando que os outros chegassem. Enquanto isso, devo ter caído no sono. No outro lado, estava Alyssa, dormindo em sua cama.

— Yuusha... — falei numa voz baixa e manhosa, típica de quem acaba de acordar — Então todos já devem estar aqui, certo? — dei uma pausa, soltando um bocejo, do qual tapei com a mão. Ainda assim, fui incapaz de desfazer-me do meu tom sonolento. — Você está bem? Não se machucou? É que vocês foram lidar com um ladrão, então eu pensei que talvez tivesse acontecido alguma coisa ruim...

Levei ambas as mãos até os olhos para esfregá-los para afastar o sono, sem sucesso. Ah, desde quando eu sou assim tão sincera? Deve ser porque acabei de acordar. Quando estou neste estado, eu não raciocino direito. Minha preocupação com o Yuusha era real, mas não era do meu feitio deixar assim tão evidente e de forma tão... Delicada. São nesses momentos que eu acabo pensando coisas sentimentais e desnecessárias. Bem, após a morte da minha mãe e dos familiares de Yuusha, ele e meu pai são meus únicos parentes vivos. E, vale ressaltar, este último é alguém que não desejo nem mesmo ver a cara. Assim sendo, meu primo é o que me resta, e acredito que vice-versa. Isso é um pouco... solitário.

E, também, acabo me lembrando de três anos atrás. Numa hora dessas, eu estaria deitada numa cama enorme e extremamente confortável. Mas não é disso que eu sinto saudade. E sim, do carinho que levava da minha mãe enquanto ela dizia "bom dia". Eu, no entanto, fingia que ainda estava dormindo, mesmo que não pudesse conter um ligeiro sorriso. Já faz tempo que tenho a consciência de que aqueles dias jamais voltarão, e ainda assim, são nesses momentos de sonolência que minha mente insiste em levar essas memórias à tona.

Me espreguicei, esticando os braços para cima, e depois relaxei. Finalmente abri meus olhos totalmente. Ah, ainda bem, eu estava raciocinando de novo. Daqui pra frente, certamente tomarei o cuidado de nunca mais ter uma soneca durante o dia. Definitivamente, nunca mais.

Chegamos a base e Yuusha foi na frente, fui atrás dele com intenção de falar logo com as meninas sobre o ladrão. Vi Lyanna sonolenta e preocupada com Yuusha, não queria interromper essa cena fofinha entre os dois, porém deveríamos decidir logo o que fazer com o Killian.

-Lyanna, odeio ter que interromper - encostei na porta - mas temos um assunto a discutir.

Apontei para trás, como se dissesse que tinha algo para mostrar.

-Antes de qualquer coisa eu assumo total responsabilidade, se for culpar alguém por algo, culpe a minha pessoa. - Falei e desencostei da porta, esperando que Lyanna me seguisse. Esperava qualquer tipo de reação negativa em relação ao pequeno ladrão, porém a ideia de trazê-lo foi minha e assumiria a responsabilidade por essa decisão.

Em poucos minutos Lyanna despertou de seu pequeno cochilo. Estava um tanto quanto sonolenta e parecia um pouco distraída. Logo iniciou alguma conversação comigo, que esperava sentado por ali. — Sim, e acabamos trazendo aquele moço conosco. — À respondia normalmente enquanto me aproximava de sua cama, já que ela mesma parecia demorar-se por ali por mais algum tempo. Neste mesmo instante, pude sentir um forte aroma natural, como de flores. Não que fosse incomodo, pelo contrario, chegava à ser agradável. Me perguntava se este seria o cheiro de Lyanna. Após perceber isto, notei que tanto Lyanna quanto Alyssa estavam um pouco diferentes.

Em seguida ela pronunciou algo que me deixara tocado. Perguntara se eu estava ou não bem. Me senti mal por alguns segundos atrás estar pensando que Lyanna não tinha um pingo de preocupação comigo. Sendo assim, me envergonhei mais uma vez, recuando um pouco e respondendo com as bochechas ruborizadas enquanto coçava meus cabelos para que ela não percebesse. — N-Não. Eu estou bem. Obrigado.

Alguns segundos depois ela se espreguiçou e finalmente se levantou, com seu mesmo olhar de sempre. — Suas feridas... Ainda machucam? — Perguntei ainda preocupado, já que os curativos que eu fizera na taberna foram realizados de ultima hora.

Night acabou aparecendo na porta, e em seguida anunciou à Lyanna que tínhamos trago algo novo. Apesar de já te-la noticiado, ela parecia surpresa. Afinal, no momento em que eu anunciara à ela, ainda estava em um estado sonolento, poderia dizer que ainda estava dormindo.

Yuusha disse algumas coisas, das quais admito não ter compreendido imediatamente. De qualquer maneira, nada de ruim havia acontecido. Ainda bem. Ele pareceu ficar meio envergonhado com minha sinceridade, e confesso que até mesmo eu fiquei. No entanto, não foi o bastante para ruborizar minhas bochechas, como naquela vez. Após eu levantar, ele perguntou a respeito de minhas feridas. Apesar da minha sensação de déjà vu, respondi-o normalmente, agora que já estava completamente desperta:

— Não se preocupe, isso não é nada. — disse enquanto passava a mão sobre o lado esquerdo de minha cintura, o local de meu machucado. Porém, minha tranquilidade logo se foi. Para minha surpresa, Nightingale veio à porta e começou a falar sobre algum assunto sério. Dirigi-me prontamente para fora do quarto, seguindo-a. — O que houve? — perguntei calmamente, pois não consegui pensar em nenhum cenário muito ruim para a situação. Na melhor das hipóteses, Ragil teria morrido durante a missão. Seria uma pena, não?

A algum tempo atrás - poucos segundos, se não me engano - sentia algo quente ser colocado em mim, como um tipo de cobertor. Peguei-o com firmeza e puxei para mais perto de meu corpo, aquela sensação... Era tão boa. Me lembrava de algumas tardes que eu dormia, e meu irmão me cobria. Sempre que ele pudia, claro, afinal, estava ocupado com seus serviços por ser Comandante do Exército. Mas, era muito bom poder dormir com um clima agradável podendo descansar finalmente.

Cochilei profundamente; não via nada. Nem sequer mesmo um sonho, nem algum pesadelo, será que dormir mesmo? Era estranho, apenas conseguia ouvir vozes, que se não me engano, pareciam ser de Yuusha, Lyanna e Night; mas não conseguia entender o que diziam. Abri meus olhos lentamente, esfregando minhas mãos em meus olhos.

— Hm... — levantei-me na cama com dificuldades, enquanto sentia alguns ossos estralarem normalmente. — O que... Tá acontecendo? — Piscava meus olhos rapidamente, para ver se eu conseguia recuperar minha visão, que estava embaçada.

Como sempre, eu não estava a fim de conversa, ainda mais com um cara que me atrasou poucas horas atrás. Como eu mesma detesto ser ignorada, decidi dar uma resposta curta porém explicativa à ele:

— Não sou dos Caçadores e, falando francamente, não estou muito feliz com a ideia de ter que tentar entrar no grupo deles. Mas, como essa criança aí quer entrar e eu serei paga para ajudá-lo a fazer isso, tenho que acompanhá-lo — cutuquei Maxim com a bota, e ele praticamente nem se moveu — Assim que ele fizer o que quer fazer, vou sair.

Depois de alguns segundos, percebi que havia dito coisas desnecessárias à ele sobre mim e meu companheiro, mas não dei importância — afinal, um cara que não conseguiu escapar de um bando de viajantes cansados não poderia fazer nada com essas informações minhas.

-Então... - Falei enquanto andava para fora da cabana e Lyanna me acompanhava, também havia Yuusha e Aly que havia acabado de acordar e estava confusa. - Me sigam, Yuusha já sabe o que é, mas vocês precisam ver isso. Não sabia direito o que fazer então pensei que era melhor vocês ajudarem a decidir.

Chegamos ao lado de fora onde estavam Ragil, Maxim, a índia e, claro, Killian. Killian conversava com Ragil, e eu odeio interromper pessoas conversando e já aconteceu duas vezes hoje, pra que? Não sei, só sei que foi assim.

-Killian, desculpe interromper mas você poderia vir aqui? - Chamei e então me virei pras meninas, completamente séria esperando qualquer reação possível. - Como já disse, assumo toda a responsabilidade por ele e qualquer decisão que decidirem tomar.

Segui Nightingale, acompanhada de Yuusha e Alyssa, até o lado de fora da casa. Ela chamou um tal de Killian, pedindo para que viesse. Conforme observei, ela referia-se ao garoto loiro, que logo atendeu.

— Olha só quem nós temos aqui... — disse enquanto me aproximava, com os braços relaxados e as mãos juntas atrás de meu corpo. Inclinei-me naturalmente, analisando-o, e prossegui com minha fala. —  Foi você quem eu vi roubando o embornal de Yuusha junto de algumas bolsas, durante o combate na taverna. Sendo assim, presumo que também seja aquele que levou as moedas do Velho. Acertei? — dei um sorrisinho. Recuei levemente, retornando a minha postura normal. — É como ele descreveu, exceto na parte em que disse que seus olhos eram como os meus. Afinal, você tem heterocromia. — conclui, descontraidamente. Dada a diferença mínima entre a coloração das íris, provavelmente era algo difícil de se reparar. No entanto, é claro que este detalhe não passou despercebido por meu olhar proeminentemente analítico, do qual me orgulho.

Aquele rapaz era até bonito, principalmente se eu tenho em comparação o pouco que pude ver dele antes, quando reparei de relance na taverna. Além disso, levando em conta que ele se deu o trabalho de devolver o embornal de Yuusha, talvez não fosse uma pessoa tão ruim. Depois de conhecer Nightingale, perdi qualquer resquício de pré-julgamento contra ladrões que eu poderia sequer ter.

Embora eu estivesse tratando-o gentilmente, eu sabia que sua presença aqui não era em vão. E, conforme o que a ladra disse antes, deveríamos decidir o que fazer com ele. Não transpareci em nenhum momento, mas eu já tinha isso em mente. Contudo, preferi agir de maneira pacífica. Não só porque ele talvez pudesse ter alguma utilidade, como eu também tinha curiosidade para saber o que os outros sugeririam. Em especial, Alyssa; já que ela, ao mesmo tempo que é gentil, preza pela justiça. Estas duas características certamente entram em conflito nesta situação. Não obstante, Yuusha provavelmente interferiria se alguém ali tivesse uma postura negativa diante do garoto.

Optei por esperar a reação das outras pessoas, mantendo-me em meu semblante tranquilo. Só então, eu daria meu veredicto sobre o destino do ladrão. Vale ressaltar, não é só minha opinião que importa aqui. A não ser que me sejam apresentados argumentos que me levem a tomar uma decisão mais concreta, eu estava dividida entre só deixá-lo ir ou permitir que ficasse conosco. É claro, isso dependeria de sua vontade e quais vantagens ele poderia nos trazer.

Fomos seguindo Nightingale, chegando ao lado de fora. Por mais que estaria confusa antes, pude lembrar que ela e o restante fora em busca do ladrão que roubou o Velho da Taverna. Permaneci calada, enquanto o observava atentamente com uma cara normal.

Esperei que Lyanna falasse primeiro, já que era a líder do nosso grupo - obviamente, já que ela tem escolhas sábias. Percebia que ela estava um pouco ironizando com ele no começo, mas, dava para notar que ela estava tratando o gentilmente. É,  não devíamos ser assim com ele, já que era um ladrão; ladrões não deviam merecer um mínimo de respeito. Tirando Nightingale, já que mostrou ter cooperação,

— Muito bem... — dei um pequeno passo, ficando ao lado de Lyanna — Killian, certo? Não pense que vou tratar você com educação, sabe. Não gosto de ladrões, e nunca gostarei. — mantive um tom alto em minha voz, para que ele ouvisse bem — Sabe das consequências de seus atos? — dei uma pequena bufada, olhando para o chão.

O que eu deveria fazer para ele? Acho que estava perdendo um pouco da minha noção, até porque, o restante já deveria me achar estranha com este ato, mas eu era assim mesmo.

— Olha, se quiser, poderemos resolver isso de uma forma amigável, ou então, iremos resolver isso com os guardas. Pode demorar o tempo que quiser aqui, mas ainda vai ter que ser punido por este roubo e pelos demais que já fez.

Cruzei meus braços, mantendo um olhar intimidador nele. Não pegaria leve com ele, ao menos que mudasse o ato de roubar e se tornasse uma pessoa comum. Mas também, deveria ter seus motivos para roubar... Isto não importa para mim. Esperaria sua resposta, e até mesmo, a opinião do restante.

Logo, todo o restante do pessoal apareceu do lado de fora, começando um assunto bastante enrolado sobre o que fazer com o carinha que surrupiou um pouco da grana do matusalém da Taverna. Ótimo, eu não precisaria entrar na casa da lenhadora de bonsai e nem mesmo me preocupar com a possibilidade de acabar pisando nela enquanto andasse pela construção.

Não demorou muito para que eu quisesse encerrar rapidamente aquela discussão. Afinal, aposto que todos estavam cansados — menos as donzelas que ficaram com sombra e água fresca enquanto procurávamos o gatuno — e desejavam intensamente uma cama macia para ter um bom e merecido repouso. Impaciente, estralei as juntas dos dedos.

— Como vocês enrolam para decidir uma coisa tão simples... — bufei, coçando a cabeça — Ó, é só pensar direito: ele roubou, não roubou? E ele também é um idiota. Ou seja, além de ladrão, ele é um babaca. E gente babaca que tem que apanhar, pronto. Resolvido. Aí, posso bater nele?

Acompanhei Night e Lyanna até que chegassem à porta da cabana, Alyssa vinha logo atrás. Notei que todos nós 4 estávamos praticamente formando um semi circulo com o restante do grupo, era como uma reunião. Com exceção de Maxim, que parecia desmaiado no canto da cabana, por sinal babando exuberadamente. E por citar esta ultima, o doce aroma da comida de Lyanna parecia cobrir toda aquela região.

Em meio àquele semi-círculo todos opinavam algo para com aquele moço que havia furtado o pobre senhor da taberna. Sabia de seus atos criminosos e que talvez ele viesse à comete-los novamente, mas não era o tipo de pessoa que julgava as outras pessoas e muito menos impunha castigos como forma de pagar à mesma moeda. Pensava que no fundo, ele deveria ter tido algum motivo para fazer tudo isto.

— Lyanna, não podemos resolver isso pacificamente? Talvez ele tenha tido algum motivo para ter feito o que fez. — Dizia em um tom baixo enquanto cutucava sutilmente Lyanna pela manga de seu vestido. Um tanto envergonhado poderia dizer, afinal, não era somente o cheiro da comida que estava intenso.

Cada um tinha uma opinião diferente sobre o que fazer com o Killian, ele apenas observava em silencio cada um, não sabia dizer o que ele estava pensando mas segurei em seu ombro e apertei um pouco, o encorajando em caso se ele estivesse intimidado com as meninas. Não posso dizer que não achei engraçado Alyssa e Ragil querendo tirar o coro dele e cozinhar pro jantar, foi cômico. Já Lyanna e Yuusha foram mais educados com o rapaz.

Yuusha levantou uma boa tese, Killian pode estar roubando por algum motivo e não por ser um mauricinho e se achar a ultima palha do palheiro. Normalmente pessoas são forçadas a roubar por causa de suas condições financeiras como aconteceu comigo, e nem todo mundo via isso de bom grado, principalmente por roubo ser crime. E tinha certeza que essas pessoas não entenderiam esse tipo de coisa, já que Yuusha e Lyanna são da realeza e Alyssa parecia estar no mesmo patamar de Lyanna. Ragil eu não sei, ela tem cara de quem poderia roubar se quisesse, nunca a perguntei mas diria que é uma mercenária, ou é só coisa da minha cabeça.

Olhei para todos que estavam ali e suspirei.

-Eu nunca achei roubo uma coisa tão grave, principalmente por que nunca se sabe os motivos de se roubar. A ideia do senhor Yuusha é interessante, esse rapaz pode ter roubado por algum motivo que não é de nosso conhecimento. A população tem o costume de julgar as pessoas pelo que elas veem, e não pelo que realmente é, e isso é um dos piores defeitos das pessoas que nunca passaram a real necessidade. - Olhei pra baixo por um momento, mas logo levantei a cabeça novamente. - A necessidade é tão grande que se é forçado a fazer coisas horríveis, cometer crimes apenas para ter a chance de sobreviver, abandonar pessoas... Acho melhor entendermos melhor o por que ele fez o que fez antes de decidirmos qualquer coisa.

Depois de falar isso tudo, fiquei um pouco mais para trás e permaneci calada. Por que sentia a necessidade de proteger esse rapaz? Talvez por que ele fosse um ladrão como eu e com uma porcentagem de chance de ter passado algo tão ruim quanto eu passei. Porém, se ele tiver roubado por drogas ou algo parecido, o rio ficará vermelho ao por do sol.

Observei atentamente o desenrolar da situação — que estava muito interessante, por sinal. Como já era esperado por mim, e talvez fosse surpresa para os outros, Alyssa manteve uma postura rígida diante de tais fatos, e declarou que o ladrão deveria ser punido pelas suas más ações. Ragil, mostrando-se a troglodita de sempre, quis simplesmente bater nele. Já Yuusha, por sua vez, obviamente intercedeu a favor do rapaz. Nightingale apoiou-o, com argumentos bastante válidos para justificar o problema. A índia se manteve sem pronunciar a respeito. A minha surpresa, no entanto, foi devido à resposta de Killian. Passando por um problema como esse, qualquer um em seu lugar poderia ter abaixado a cabeça, implorado por sua vida, ou até mesmo tentado fugir. No entanto, ele apenas rebateu as reações negativas, e garantiu ter uma razão para seus atos.

O que isso tudo indicava? Um empate, dois contra dois. E o que isso significava? Perda de tempo. Senti que minha decisão, mais do que nunca, pesaria na resolução do problema. Para bem, ou para mal. No final das contas, eu realmente precisaria escolher um destino pro garoto? Estava quase certa de que não seria necessário intervir muito. Enfim, não tem jeito. Dei um longo suspiro, seguido de um pequeno passo para frente.

— Francamente, não estamos indo a lugar algum... — resmunguei, e então comecei a falar, colocando a mão direita na cintura — Ei, garoto. Você diz que tem uma justificativa para seus roubos, mas que não tem confiança em nós o suficiente para dizer qual é, correto? Então basta tê-la. Pode levar um tempo para se confiar em alguém, em certos casos — olhei indiscretamente para Ragil — uma vida inteira, eu entendo. Mas, sabe como é, minha amiga não é do tipo que deixa um ato desses impune — desta vez gesticulei apontando para Alyssa —, e eu detesto ter que contrariá-la. Só que, como a boa pessoa que é, ela também é capaz de perdoar; vide a ladra que anda conosco. Portanto, façamos o seguinte: quando se sentir confortável para tal, nos conte seu motivo. Até que esse momento chegue, nos acompanhe, e certifique-se de não provocar a ira da besta. — olhei novamente para a briguenta, então retornei ao Killian — Resolvido? Eu estou com fome. Você também pode comer, se quiser.

Finalizei, retirando a mão da cintura e relaxando o braço. Esperava que aquilo desse um basta na discussão, mas decidi esperar pelos outros antes de retornar para a casa, não deixando fora de cogitação alguém me retrucar. Parando para pensar... Foi mesmo ruim eu ter caído no sono. Se eu tivesse comido antes que chegassem, não estaria passando por isso. Ao menos, utilizar a fome do grupo para dar um fim nisso o quanto antes foi meu grande triunfo, afinal, eu quase podia ouvir estômagos roncando ali no meio.

Abri meus olhos lentamente, ainda meio atordoado. Me assustei ao ver que eu não estava mais no lugar anterior, então havia cochilado e... me teletransportado para aquela casa?

Ainda sem entender muito do que acontecia ao meu redor, ouvi apenas um pedaço da conversa entre o pessoal que estava na Taverna do Velho, incluindo um rapaz loiro. Como sempre, Ragil estava com a cara amarrada e fechava com tanta força as mãos que as veias pareciam estar prestes a pular para fora — Lyanna devia ter falado algo que não a agradou, provavelmente, e minha companheira controlava-se para não estrangulá-la.

Eu sentia um pouco de vontade de rir da cara dela quando ouvi Lyanna dizer algo realmente empolgante. Realmente empolgante, mesmo! Então, eu finalmente poderia tirar a barriga da miséria! Comer aqueles ensopados nojentos de botecos e as gororobas que Ragil fazia de vez em quando estava se tornando insuportável, e provar a comida de alguém novo parecia ótimo — sem dizer que Lyanna parecia ser uma garota asseada, julgando por seu perfume, e também poderia ser uma cozinheira razoável.

Me sentando, cruzei as pernas, animado. Toda a minha sonolência havia desaparecido só de pensar na tal da comida, admito.

— Oh, nossa, finalmente! Estou tão faminto que poderia comer um cavalo! — comentei entusiasmadamente — Você mesma cozinha, Lyanna? Isso é tão incrível! Você não acha, Ragil? Ela poderia te ensinar algumas receitas, pois parece ser uma ótima cozinheira!

Assim que Maxim acordou, disparou a falar, como sempre. A única coisa que pude pensar quando imaginei Lyanna cozinhando foi ela numa minúscula cozinha de bonecas, com panelas e utensílios ainda menores do que a própria garota — e, cá entre nós, algo menor do que ela é realmente inacreditável.

Apesar de que eu estava com fome, não me empolguei com a ideia de comer na casa daquelas pessoas que eu nem mesmo conhecia direito. Até parece que eu seria burra assim, tch. Com certeza, aquela pirralha jóquei de formiga colocaria algo suspeito na minha refeição por pura inveja de mim, obviamente. Sem falar que eu, como responsável pelo pirralho, não permitiria de modo algum que ele sequer tocasse em algum prato.

— Você só pode estar brincando. Eu, aprender com essa coisinha aí? — me abaixei um pouco, colocando as mãos no joelho e rindo debochada e abertamente — Só se for para aprender como não ser levada pela enxurrada nos dias chuvosos, não é, criaturinha?

Voltando a deixar o corpo ereto, ajudei Maxim a se levantar. Ele cambaleou um pouco, mas pôde colocar-se de pé depois de um pouco de esforço. Cochichei disfarçadamente em sua orelha:

— Nós entraremos, mas não tocaremos de modo algum na comida daqui. Caso você queira comer algo, não se preocupe: depois dou um jeito de arranjar isso para você — confesso que menti nessa parte —, entendeu?

O menino, sem disfarçar a decepção, abriu a boca para reclamar. Dei um tapa na nuca dele que o fez calar a boca, e então cruzei os braços, esperando que os donos da casa entrassem antes.