Base de Caçadores

Meu sangue ferveu ouvindo aquela ofensa tão tosca e baixa. Por mais puta que eu ficasse a cada vez que ela me ofendia, falar de Maximiliam era inaceitável — até porque ele não havia feito nada para ela. E, além disso, eu sou a única pessoa no mundo inteiro que pode tirar sarro da veadagem dele. Lyanna não sabia com quem estava mexendo. Apesar de que me aproximar de Caçadores para ajudar Maxim com seu objetivo fosse importante, eu não aguentaria ouvir todas aquelas idiotices calada.

Bufando e já encarando-a com raiva, atravessei o cômodo e acertei um sonoro murro no mármore do balcão, com o punho fechado. Me controlando o máximo que podia para não grudar aquele rosto cínico com a mão e apertá-lo até transformá-lo numa bolinha, comecei a falar. Minha voz nem mesmo estava estável, de tão irritada que eu estava.

— Escuta aqui, criança. Não importa o quão mimada ou metida você seja, aprenda a respeitar os mais velhos, sua pequena imprestável. Você acha que eu vou continuar quieta, apenas ouvindo o que você diz? Não, eu não vou. E, na exata hora em que eu explodir, não vou levar em conta o seu tamanho, sua idade ou quem diabos você é — não parei de encarar aqueles olhos enormes e azuis por um mísero segundo — Foda-se se eu perderei a oportunidade de ajudar Maxim ou não, foda-se se vou ficar sem dinheiro. Eu não sairei daqui sem arrancar pelo menos um desses seus dentes.

Deixando de me apoiar no balcão, rosnei um último aviso:

— Eu te deixei me provocar várias vezes sem fazer nada além de responder, não é? Saiba que com Maxim não é assim. Eu não vou deixar barato se você tocar no nome dele ou encostar um único dedo em seu rosto, loura suja — rugi — Ah, e, sobre eu puxar uma carruagem... Saiba que até mesmo um cavalo presta para mais coisas do que você, sua pulga desbotada.

Killian riu de minha pequena brincadeira. Nightingale apareceu em seguida, perguntando onde teria rum. Não temos esse tipo de bebida aqui, só o que restara do saquê de ontem, aliás. Porém, não tive de tempo de respondê-la, pois Ragil disparou a falar intermináveis ofensas direcionadas a mim.

— Basta! — gritei com raiva, enquanto me pus de pé — Não permitirei que meu nome e existência sejam desonrados com tais palavras, ainda mais vindas de alguém como você! Não sei exatamente o que a torna tão protetiva com relação a este garoto, mas se é incapaz de tolerar uma futilidade como aquela, isso só mostra o quão tola e imatura você é. Assim como você, apenas ouvi e retruquei seus insultos, nada mais. Só que agora você foi longe demais com esses seus dizeres estúpidos e desnecessários. Imperdoável. Não admitirei que aja como bem entende em minha própria casa, principalmente quando está tão dependente de mim. — tudo o que minha voz e minha face transmitiam era o mais puro ódio. Encarei aquela mulher durante todo o tempo. Dada a minha irritação, meus punhos estavam cerrados. E não demorou muito, labaredas azuis o cercaram. Estavam enormes e descontroladas, refletindo meu estado. — Resolveremos isso lá fora, imediatamente. — finalizei dando as costas, me dirigindo à porta.

Abri-a de uma vez, apesar de estar moderando minha força ao máximo; caso contrário, já teria arrancado a porta. Contudo, para minha surpresa, do outro lado estava um menino, com aproximadamente a minha altura. Tinha cabelos ruivos e arrepiados, com olhos verdes brilhantes, que entravam em contraste com a pele clara. Suas vestes eram simples e um pouco sujas, mas, mais importante, carregava um cachecol marrom no pescoço.

De acordo com as informações que recebi a alguns dias, ele era um caçador novato, recrutado por Ryuu recentemente. Sua mão estava fechada e levantada — ele provavelmente estava prestes a bater na porta. Pareceu confuso e espantado em me ver aparecendo assim, e com o cristal ativado, mas apenas esperei que ele dissesse o que queria.

— Oh, se não é a princesa? — disse, tentando disfarçar o susto que havia levado, cambaleando dois passos para trás. — Vejo que cheguei em mau momento — deu uma risada sem graça, e continuou —, mas trago uma importante mensagem vinda diretamente do líder! — falou com animação, como se estivesse fazendo a coisa mais empolgante do mundo.

— Mau momento? Péssimo momento. Diga. — fui séria e direta, mas aliviando minha expressão. Então Ryuu estava se aproveitando de um garotinho inexperiente para ser seu "mensageiro", por que não estou surpresa com isso?

— O líder convoca com adiantamento todos os caçadores para a sede na capital de Aceles, a presença tem prazo máximo de daqui três dias, princesa! — ficou com uma postura ereta, fazendo um gesto de continência. Ele realmente estava levando isso a sério.

— Três dias? O que aquele idiota está pensando? — dei uma pausa, suspirando — Certo, estaremos lá. Ah, e não deixe aquele cara usar você desse jeito. — avisei, e então fechei a porta subitamente.

Virei-me em direção a todos, esperando que já tivessem ouvido a conversa, que ressoou naquele cômodo minúsculo. Por um momento até esqueci que estava com vontade de encher Ragil de socos até fazê-la parecer um animal diferente, mas parei para ponderar se isso realmente valia a pena. Afinal, lá estava eu, inconscientemente fazendo coisas desnecessárias de novo.

— Já chega. Não tenho mais tempo para perder com você, e nem com ninguém. Partiremos amanhã cedo. — encerrei, séria. Em seguida, as chamas azuis se dissiparam. Fui diretamente para meu quarto, batendo a porta ao entrar. Ao menos assim, de cristal desativado, ela não quebraria. Retirei as botas e me joguei em minha cama. Amanhã será um longo dia.

Provavelmente, Lyanna achou que conseguiria me intimidar fazendo aquele foguinho de palito de fósforo surgir na mão e ficando bravinha. Em vez de ficar usando palavras difíceis e se achando melhor por causa disso, acho que aquela pirralha deveria parar de falar, deixar de ser covarde e partir para cima, não? Além disso, a partir do momento em que permitiram que eu colocasse meu pé naquela casa, automaticamente me deram a liberdade de falar e fazer o que eu bem entendesse.

Assim que ela saiu e me chamou para o ringue, é óbvio que não hesitei e fui para fora também. Logo, um moleque estranho apareceu e chamou-a de "princesa", fazendo umas reverências exageradas e afins. Naquele exato momento, um buraco na minha mente foi tapado. Então, aquela coisinha insolente era a tal da princesa daquele lugar? Era aquele sobrenome que havia me confundido horas atrás?

Oh, merda. Isso significava que ela poderia mandar uma porrada de cavaleiros, soldados e afins atrás de mim para chutar minha bunda? Haha, não.

Se ela era realmente alguma princesa ou pessoa rica, com toda a certeza não moraria numa espelunca daquelas. Ou seja, Lyanna não era. E, se era, era a princesa mais fuleira que eu já tinha visto, sinceramente...

Quando ela broxou e entrou novamente em casa praticamente passando pelo meio das minhas pernas, tive toda a certeza que era uma princesa de araque. Oh, Deus, nunca ri tanto na minha vida. Lógico que a segui até o quarto e, quando ela fechou a porta, dei umas batidas e debochei:

— Qual é, alteza? Arregou? Covarde...

Voltei para a sala e fui para perto da porta outra vez. Lyanna querendo ou não, eu levaria Maxim para ver o fulano dos Caçadores, sem me importar com qualquer outro pequeno ou minúsculo motivo que quisesse me atrasar.

Escutei uma última provocação de Ragil. Que pessoinha mais persistente, huh?

— Sinto muito — comecei, falando em um tom irônico, alto para ser ouvida na sala, porém calmo —, mas o meu tempo reservado para lidar com a dislexia da qual alguns de meus queridos súditos sofrem acabou. Passe amanhã e eu pensarei em seu caso.

Após concluir a frase, bocejei. Estava com sono, então apenas virei para o lado, e logo adormeci.

Nightingale havia entrado, perguntando se havia rum. Bem, minhas preferências atualmente eram mais de saquês.

— Não, apenas saquês. — apontei para a estante, aonde havia algumas bebidas, já que havia quase acabado com todas ontem — Se quiser, pegue algum para tomar, porém vai ter que pagar depois. — brinquei.

Após uma brincadeira de Lyanna com Ragil e o elfo, aconteceu algo inevitável. Meu deus, que treta era essa? Também, nunca vi a Lyanna naquele jeito, pelo menos, manteve sua postura correta, sem ser vulgar; impressionante.

Apenas bufei quando isto tudo acabou, peguei os pratos restantes da mesa e lavei-os, calada. Fiquei lavando, até que eles emitissem um brilho ofuscante pela limpeza, demorou muito, mas consegui terminar. Quando virei, Killian - o ladrão no qual guardo um ódio profundo - estava dormindo no canto de casa. Quem deixou ele dormir aqui? Ele estava muito folgado em minha opinião. Me aproximei dele, na tentativa de dar um chute nele, mas deixei quieto. Já haviam acontecido muitas brigas hoje, e eu não sou muito de fazer isto.

— Arrumem um lugar para dormir, vocês dois. — falei para Ragil e Maxim — Se quiserem, podem dormirem aqui dentro. Não sei aonde, mas tentem arrumar algum lugar.

Entrei dentro do quarto; Lyanna já estava dormindo. Parece que o dia foi muito difícil para ela, principalmente pela Ragil. Por mais que eu não conheça muito bem a história dela, ela era uma princesa, quase igual a mim, porém, eu sou uma nobre. Retirei o vestido, dobrando-o e colocando por perto da minha cama. Estava apenas de biquíni, era bom para mim, afinal, aquele vestido estava me dando muito calor; e eu sou bem calorenta. Deitei na cama, esperando que o sono viesse.

Wow.

Enquanto eu bebia o saquê que Alyssa havia me avisado onde estava, Lyanna e Ragil brigaram feio, Lyanna explodiu, tipo, literalmente. Ela ficou com aquelas chamas azuis nos olhos, e chamou a Ragil para resolverem lá fora. Estava achando a situação realmente engraçada, eu imaginava a Ragil voltando com uns mil calos na cabeças e a Lyanna suspirando e mandando todo mundo dormir, porém nem tudo pode continuar engraçado.

Quando Lyanna abriu a porta para sair, um rapaz ruivo anuncia que o chefe dos caçadores quer que elas(Lyanna e Alyssa) vão encontra-lo no prazo de três dias. Bebi mais um gole do saquê e o coloquei de volta, todos foram dormir e não fiz diferente, fui para onde dormi da última vez, com aquela mesinha esquisita mas quentinha. Soltei meu cabelo, suspirei e me deixei descansar.

Enquanto ainda terminava de degustar minha refeição, houve um certo conflito entre Lyanna e Ragil. A medida que uma provocava, a outra retrucava adicionando uma nova provocação, até que chegassem ao ponto de possivelmente brigarem. Não poderia deixar de demonstrar minha aflição perante tal cena, bufando desanimado enquanto pensava: "Mas estávamos indo tão bem até agora..."

Tentaria acalmar uma das duas enquanto se dirigiam para o lado de fora da residencia. Porém, algo surgiu durante esse meio tempo. Para ser mais exato, um menino de cabelos ruivos que viera trazer uma mensagem do líder dos caçadores, os convocando para que se dirigissem até a sede, que se situava em Aceles. Não me recordava de ter ouvido se falar sobre essa localidade, mas algo ainda me parecia ser familiar. Por sorte, aquela mensagem que o menino trouxera, cessara a raiva que Lyanna havia acumulado naquele momento.

Em pouco tempo todos já haviam se acomodado em alguma localidade da residencia para descansar. Com exceção de Alyssa, que ainda estava à lavar a louça. Tentaria oferecer alguma ajuda, afinal não havia nenhuma outra forma de recompensa-las pela hospitalidade. Pelo menos não neste momento, já que ainda não me recordava sobre nada que ocorrera 2 anos atrás.

— Poderia ajuda-la em algo Alyssa? — Diria sutilmente enquanto me aproximava vagarosamente, em seguida, secaria a louça enquanto Alyssa à lavava. — Não se preocupe quanto à Lyanna e Ragil, sei que depois de algum tempo de convivência, aprenderão à se respeitar e a prosperar. — Dessa vez diria sorridente, demonstrando que tinha extrema confiança em minhas palavras.


Assim que tivéssemos terminado, retornaria para a sala e me colocaria para deitar. Provavelmente debaixo da mesa, assim como na noite anterior. Por sinal, Evellyn pensara o mesmo. Já estava cochilando serenamente em seu próprio canto. Tentaria não incomoda-la me aconchegando por ali mesmo. Obviamente, o chão não era a cama mais confortável do mundo, mas estava feliz simplesmente por estar ali, junto daquelas pessoas que conhecera a pouco tempo e já me faziam sentir em casa. Minha nova casa.

De algum modo, acredito que eu já estava me acostumando com as frequentes briguinhas entre Lyanna e Ragil, então o máximo que eu poderia fazer seria pegar a pipoca e ficar assistindo — torcendo por minha guarda-costas, obviamente. Já que eu teria que ficar sem comer nada, pelo menos poderia me divertir dormindo na casa de outras pessoas, já que a moça de peitos enormes ofereceu.

— Oh, sério? — até então, eu continuava sentado num canto, apenas observando o que acontecia. Logo, comecei a pensar num lugar legal para descansar — Que legal! Huummm, onde é que vou dormir? Que tal ali na cozinha? Ou dentro do banheiro, numa banheira? Ah, já sei! Debaixo da cama de alguém!

Incrédula com o nível de idiotice de Maximiliam, repeti o tapa na nuca dele, só que mais forte. Ele foi para a frente com o impacto, mas não dei importância. Se eu realmente quisesse machucá-lo, teria feito coisa pior.

— Ei, orelhudo, não viaja. Não vamos ficar aqui, mas voltamos amanhã bem cedo — me levantando e o ajudando a fazer o mesmo, ajeitei minhas roupas e fui em direção à porta — Ô, pessoas, volto amanhã. Não ousem desaparecer daqui, ou eu os caçarei nem que precise ir até o inferno. Eu e o pirralho vamos para uma hospedaria não muito longe daqui, e lá passaremos a noite. Como eu já disse, vou aparecer aqui bem cedo e espero vê-los de pé.

Indo para fora, vi que já escurecia e o frio aumentara um pouco. Fiz um sinal para que Maxim, que já estava antecipadamente emburrado, andasse mais perto de mim. Começamos a caminhar e não vimos nada anormal pelo começo do caminho, apesar de que aquela área realmente não era segura, principalmente à noite.

Prosseguimos, andando um pouco devagar por estarmos cansados. Depois de alguns poucos minutos, enxergamos uma luz amarelada ao longe. Apressamos consideravelmente o passo e alcançamos a hospedaria, que ficava logo numa das entradas da vila.

Como esperado, era uma taverna no andar debaixo, um pouco diferente da Taverna do Velho, e a hospedaria com os quartos era em cima. O que mais havia por lá eram bêbados, como sempre. Atravessei o salão com o meio-elfo em meu encalço e sentamos ao balcão. Logo, um senhor de meia-idade veio nos receber, enxugando alguns copos com um pano de prato.

Arrumei algo para Maximiliam comer e para mim também, uma sopa de alguma coisa que não faço a menor ideia do que seja, só sei que não era horrível — dava para engolir, pelo menos. Após ele reclamar imensamente sobre o gosto do alimento, paguei pela estadia da noite e pelo que comemos e nós dois fomos para o quarto.

Era um comum e simples quarto de hospedaria. Havia duas camas, uma disposta de um lado do quarto e a restante do oposto, com três poltronas perto de uma lareira e alguns pertences que provavelmente os últimos clientes largaram por ali — resumindo, algumas adagas quebradas, papéis rabiscados, garrafas de bebida e velas derretidas sobre a cabeceira de uma das camas.

Enquanto Maxim tomava um rápido banho, fiz alguns curativos — péssimos, por sinal, mas era melhor do que ter que me rebaixar e pedir ajuda para alguém — e tirei as botas dos pés. Naquele dia, eu vestia apenas uma camisa longa, branca — que já ficara quase transparente de tanto que eu usara —, colete marrom com bolsos e calças compridas, também marrons, com botas altas. A parte de trás da minha boca ainda doía consideravelmente por causa do dente recém-perdido, e isso me dava uma raiva imensurável.

Eu ainda resmungava sobre isso quando Maxim berrou alguma coisa sobre eu entregar sua bolsa para que ele pegasse suas roupas, lá de dentro banheiro. Debochando, falei de volta:

— Sai pelado e pega, não sou sua empregada.

Ouvi a maçaneta do banheiro abrindo e me assustei, achando que o pirralho iria sair de lá nu, mesmo. No final das contas, ele botou a cabeça para fora e, com cara de choro, praticamente implorou que eu levasse o troço. Enquanto vi apenas seu rosto atrás da porta, reparei em algumas runas estranhas desenhadas desde seu pescoço até toda a extensão de seu braço, feitas de uma espécie de tatuagem roxa. Se fosse uma pintura, provavelmente teria saído enquanto ele tomava banho, mas não saiu. Estranhei aquilo, apanhando a bolsa dele e me aproximando da porta.

— O que é isso no seu ombro? — falei, franzindo o cenho e dando a mochila com as roupas para ele. Assim que Maxim encostou na bolsa, o garoto entrou e fechou a porta rapidamente — Não bata a porta na minha cara, seu pirralho maldito!

Tentando ignorar aquilo, voltei para a cama onde eu estava sentada e separei algumas roupas para colocar depois que eu tomasse banho. Arrumei uma regata também branca e uma bermuda verde escura, além do resto — afinal, eu iria me cobrir e havia ainda o calor da lareira para aquecer o quarto durante a noite. Depois que Maxim saiu do banheiro, já vestido, não disse uma palavra e se jogou em uma das camas. Decidi não perder meu tempo mexendo com ele e fui tomar meu banho também, levando as roupas e uma toalha minha comigo.

Nada anormal foi visto ou ouvido enquanto eu fazia isso, além das risadas de bêbados no andar de baixo. Troquei as roupas após terminar o banho e ouvi Maxim roncando sonoramente. Fiquei com vontade de perturbá-lo, mas não fiz nada. Dei uma leve enxugada no meu cabelo, percebendo que já passara da hora de cortá-lo um pouco — para dizer a verdade, eu percebia isso todos os dias, mas sempre faltava tempo para que eu pudesse fazê-lo.

Não dei importância para o fato de que eu dormiria com os cabelos úmidos e poderia acordar resfriada. Eu já estava toda lascada, mesmo, então algo a mais ou a menos não faria a menor diferença. Deitei em minha cama, ainda ouvindo o ressoar de alguma briga que ocorria lá embaixo, e pensei em algumas coisas aleatórias por algum tempo. Afinal, havia acontecido muita coisa em um dia só e eu precisava processar todos os acontecimentos.

No final das contas, meus únicos pensamentos eram relacionados a quebrar a cara da Lyanna, não que isso seja importante... Acho que nada relacionado a ela seja importante, para dizer a verdade. Depois disso, percebi que seria um pouco impossível dormir com aquele barulho todo vindo da taverna, então me levantei, desci e dei uns berros para que os bêbados falassem mais baixo, atirando os pertences do último cliente nos mais baderneiros. É, deu certo.

Quando pude retornar ao quarto, deitar e pegar no sono, sonhei com algumas coisas das quais nem mesmo me lembro e algo que talvez nem tenha tanta importância, mas mencionarei. Eu estava numa espécie de templo enorme e uma elfa altíssima, de rosto fino e longos cabelos esverdeados, trajando belas vestes compridas e descalça falava algo sobre eu ter que me afastar do filho dela. Devo ter falado alguma porcaria para ela, já que a doida conjurou alguma magia de um tipo que eu jamais havia visto antes e me atacou. Após isso, mais nada.

Assim que acordei, vi que devia ser quase três horas da manhã. Levantei-me cambaleando e fiz o que sempre fazia, sobre trocar de roupas, escovar os dentes e arrumar minha mochila outra vez. Deixei Maxim dormindo e coloquei meus pertences aos pés da cama dele. Saí do quarto, desci as escadas e vi a bagunça que os clientes da noite anterior haviam deixado de presente para o taverneiro.

Saindo de lá, devo ter ficado treinando investidas com minhas espadas em árvores no escuro até umas cinco horas. Suando, subi e dei uns cutucões em Maxim para que ele acordasse e se aprontasse para voltarmos à casa dos tais Caçadores. Enquanto ele resmungava e se recusava à levantar, repeti o banho e, depois de ajeitarmos tudo, saímos e refizemos o caminho para o local.

Chegando, a casa ainda estava fechada e silenciosa, então imaginei que todos estivessem dormindo. O sol não havia aparecido completamente ainda, mas já estava claro o suficiente para enxergarmos tudo muito bem. Minha vontade era arrombar a porta, pegar um balde de água e atirar na preguiçosa Lyanna, mas isso seria um desperdício de água — alías, não é de meu feitio entrar nas residências dos outros sem ser convidada.

Por isso, me sentei, esperando ocorrer algo que denunciasse que eles estivessem acordados. Fui obrigada a dar alguns cutucões em Maxim de minuto em minuto para que ele não dormisse outra vez.

Lá estava eu, em um cômodo vazio. Ao abrir uma porta, deparava-me com uma mulher ensanguentada, a minha mãe. De novo. Já não sei quantas vezes este mesmo pesadelo tem me perturbado. Ontem, anteontem, e no dia anterior também... Praticamente a mesma coisa. Apenas alguns detalhes mudavam de noite para noite e, dessa vez, algo realmente estranho aconteceu. Após ver minha mãe coberta de rubro, ela caíra para trás, emitindo um baque alto. Acordei imediatamente, levantando da cama em um pulo. Desde quando um corpo faria tal som ao se chocar contra o chão? Estava mais para algo bem sólido, feito de metal. Não sabia se estava sendo neurótica demais, mas por um momento tive a impressão de realmente tê-lo ouvido, e não do sonho.

Sonolenta e com o raciocínio lento, dirigi-me até a porta do quarto, em passos silenciosos. Escutei a voz de Killian, e apesar de não ter entendido o que ele disse completamente, parecia que estava tudo bem. Tranquilizei-me, e então fui ao banheiro, que ficava conectado com o quarto, para tomar um banho. Prendi meu cabelo em um coque, e não molhei-o. Como esperado, a água despertou-me daquele estado odioso. Finalizando, retornei ao quarto e vesti-me:

Imagem:

A roupa é adequada ao clima quente que enfrentaremos no caminho, e a capa com certeza seria útil caso chovesse. Perfeito. Por fim, soltei meus cabelos, penteei-os e terminei de arrumá-los. Recordei-me de meu cachecol, então peguei-o e amarrei na cintura, fazendo um laço virado para trás.

Balancei Alyssa por um tempo, para que acordasse. Chegando na sala, encontrei Killian, Ragil e Maxim já acordados. É uma pena, pois seria ótimo sacudir delicadamente a briguenta para despertá-la.

— Bom dia — cumprimentei brevemente, mas logo prossegui com um pedido —, será que poderiam acordar os outros e certificarem-se que não dormirão novamente? Estarei ocupada separando aquilo que levaremos conosco na viagem.

Levei comigo uma mochila e, chegando na cozinha, coloquei-a sobre o balcão. Abrindo os armários, peguei o que restara para compor as refeições, o que não era muita coisa, por sinal. Guardando cada alimento na mochila, somados à água e qualquer outra coisa que pudéssemos utilizar, deixei-a onde estava. Uma vez que todos estivessem acordados, perguntaria:

— Algum dos cavalheiros poderia carregá-la? — daria um sorrisinho e apontaria para a mochila marrom.

Eu tive um sonho - ou pesadelo - estranho...

❝ Desta vez, tinha algo estranho de todos os sonhos que eu tive. Foi em um local diferente, de tudo que eu já havia visto. Haviam pessoas comigo, mas, não conseguia identificar-as; pois, meu olhar se focava em minha frente. Um homem alto com um manto marrom longo, junto a um outro grupo - mas, o líder deles estava ao seu lado. Ele retirava cuidadosamente o seu capuz, enquanto seu sorriso era a única coisa amostra.

Todos sumiam do nada, até a paisagem em que estava - se tornando um local vastamente branco, apenas eu e ele. Após ele retirar o seu capuz, podia notar principalmente o seu cabelo rubro, como o meu; igualmente ao seus olhos amarelados. Era o meu irmão? Ele se aproximava de mim rapidamente, enquanto meu corpo não reagia, que seria o de ir abraçar-ló imediatamente, apenas tremia e permanecia imóvel, e logo, sentia lágrimas saírem de meus olhos.

Ele parou bem em minha frente, esboçando um sorriso apenas com os lábios.

— Que decepção de você, maninha.

Ouvi um barulho metálico, saindo de sua mão - uma adaga - e encravando-o em minha barriga. Meus olhos se arregalaram, eu pude sentir a dor fortemente. Assim, eu já conseguia mover meu corpo, me segurei segurando forte a sua vestimenta, abraçando-o, mesmo com aquela dor toda. Tentava sussurrar à ele, dizendo-o que amava, sentia sua falta, e entre outras coisas; como por exemplo, o passado. Mas, nada saia, apenas era possível ouvir a voz do meu choro e suas risadas.

— Idiota.

Tudo ficou preto.❞

Gostaria de descrever que Yuusha também havia tido algum sonho referente ao seu passado, mas já completaria  alguns anos que este não se permite sonhar. Talvez seja apenas uma anomalia causada pelo coma, ou até mesmo pelo trauma de 2 anos atrás, mas sonhos não eram mais algo normal para ele. Agora apenas se assemelhava a histórias fantasiosas contadas pelos demais seres humanos.

Assim que os dedos de Alyssa suavemente tocassem sua face, Yuusha acordaria, ainda que de forma vagarosa. — A-Alyssa? Bom dia... —  A pronuncia talvez soasse um tanto fatigada, mas era apenas um sinal de que precisaria de algo para me animar. Porém antes de qualquer coisa, me arrastaria para fora da mesa e em seguida estenderia um de meus braços para me espreguiçar enquanto coçava o couro cabeludo com a outra. Se Night ainda não houvesse despertado com a chamada de Alyssa, a cutucaria na bochecha até que ela acordasse. — Precisamos ir Night! Por favor acorde.

Em seguida Lyanna entraria em cena. Levantaria minha mão, ainda agaixado, demonstrando minha disposição pra carregar a bagagem para o grupo. Obviamente à deixaria no canto até que tivéssemos que partir. Antes que todos estivessem prontos, apenas passaria pelo banheiro para lavar meu rosto. Não necessitaria de alguma bagagem pessoal, já que não obtinha nem ao menos alguma outra roupa para usar.

Por fim, seguiria até a porta e ficaria junto de Alyssa até que chegasse o momento de partida. E por citar esta, ainda não havia reparado que agora trajava um belo vestido, assim como os que Lyanna costuma usar. — Você está linda hoje Alyssa... — Diria um tanto envergonhado na esperança de elogia-la. Enquanto isto coçaria uma de minhas bochechas desviando o olhar.

I see the future but live for the moment
Make sense don't it? Ha

Ouvi um barulho de fundo em meu sonho, onde estava no meio de um campo de margaridas tomando chá numa belíssima mesa de mármore com o Sol. Ele estava sorridente como sempre o imaginei, loiro com os cabelos até o ombro, porém bem desarrumado de um jeito sexy. Olhos igualmente alegres e amarelos, como os de lobos.

 -Vejo que arrumou alguns amigos, hein? - Gracejou. - Vais finalmente esquecer-me?

Deixei-me soltar uma pequena risada, que abafei com meu punho.

-Como posso esquecer de alguém que já esqueci, meu senhor? - O observei com curiosidade, ele sorria alegremente, como se estivesse se divertindo.

- Se já me esquecestes, como estou aqui, senhorita? Sabes que isto é um sonho, não é? - Ele riu, como uma criancinha se me permite dizer. - Precisas te abrir para opções, se ficares presa ao passado, nunca serás feliz, minha querida.

Olhei para minha xícara, ela parecia mais interessante do que aquela conversa.

-Tens razão. Mas não é algo fácil, sabia?

O Sol sorriu gentilmente para mim.

-Eu sei, meu amor. Mas, como estou cansado de dizer-te, tentar não machuca. Deverias começar a se aproximar das pessoas que estão com você, eles parecem ser boas pessoas.

Fiz um biquinho.

-Você não pode me mandar fazer nada, Sol. Não sou mais criança.

Ele fez o favor de rir mais uma vez.

-Não estou mandando em ninguém, amada. Nem aqui estou, isso tudo está na sua mente. Não sou real, nem este lugar, e você sabe disso. Até sua mente quer que você siga em frente, a pergunta que prevalece é: Você conseguirá? - Ele deixou sua xícara no lugar e levantou-se. - Boa sorte, minha wolf lady*.

~x~

Nessa mesma hora, abri meus olhos ao sentir algo em minha bochecha, e vi Yuusha a cutucando, dizendo que eu tinha que levantar, já que estávamos quase na hora de partir.

-Mas já? - Esfreguei meus olhos enquanto sentava no chão onde havia dormido. - E isso é jeito de acordar alguém? - Reclamei, porém acabei por rir.

Levantei, fui no banheiro e ajeitei meu cabelo que havia ficado desarrumado, e notei que não tinha condição de viajar daquele jeito. Meu vestido estava todo amarrotado, e ele era branco demais, não ia ajudar no calor, além de estar descalça. Minha roupa de trabalho estava toda ensanguentada e rasgada, então sem condições. Fui até onde estavam Lyanna e Alyssa, se estivessem perto, e se estivessem longe chamaria as duas.

-Será que alguma das senhoritas tem alguma roupa de viagem para me emprestar? Não acho que minhas roupas tenham condições para isso. - Perguntei, esperando não incomodar as meninas com esse pedido repentino.

Yuusha prontificou-se a levar a mochila, atendendo meu pedido. Por um momento, pensei que isso talvez não fosse uma boa ideia. Afinal, ele não só parecia-me um pouco frágil, como também obteve um machucado nas costas ontem. Certificarei-me de sugerir que reveze com Killian, durante a viagem. Isso deve bastar para evitar qualquer situação prejudicial.

Algum tempo após despertar, Nightingale se dirigiu a mim e Alyssa para pedir uma roupa emprestada. Certamente, um vestido como o que ela usava poderia ser um grande incômodo. Principalmente se levar em conta que, no final de nossa viagem, teremos que pular em um rio. Um vestido branco causaria um momento bem constrangedor, diga-se de passagem. Eu deveria ter oferecido-a algum traje logo de início, mas graças às minhas desavenças com Ragil, acabei sem tempo para pensar nisso.

— É claro. — assenti — Sinta-se à vontade para ir no meu quarto, e pegar qualquer peça do armário emprestada; eu não me importo. — expliquei, gentilmente.

Em seguida, fui até o lado de fora, onde a maioria já se encontrava. Todos esperavam próximos à porta, mas segui além, descendo a pequena fundação de pedra, até a estrada. Lá fiquei, de braços cruzados, pensativa. De fato, tinha muita coisa pra refletir, mediante a estes dois últimos dias. Esperaria, e uma vez que estivessem prontos para partir, tomaria a dianteira, guiando-os pelo caminho até as montanhas.

The world is not behind you
The world is ahead

Lyanna havia dito que eu poderia pegar alguma coisa em seu armário, fiquei aliviada por não ter a incomodado com o pedido, roupas são meio pessoais. Mas pelo menos eu teria algo melhor para vestir para a viagem, por isso fui andando até seu quarto e abri seu guarda-roupa. Vários vestidos apareceram a minha frente, por um tempo havia esquecido que Lyanna era princesa, mas me veio de volta a mente quando vi seus vestidos. Muitos não eram de meu gosto, apesar de qualquer um ali ficar bem em mim, decidi optar por algo mais discreto. Um vestido azul marinho que tem finas alças com uma faixa preta na cintura, a saia do vestido era rodada e ele chegava nos meus joelhos. Aproveitei e peguei um chapéu azul escuro que normalmente é usado em funerais, para me proteger do sol, e uma sapatilha igualmente azul escura, porém confortável a sua maneira. Não coloquei o chapéu ainda, não combinava muito com o vestido, apenas o colocaria quando o sol estivesse realmente quente.

Vestes:

Após me vestir fui para o lado de fora, observando a todas aquelas pessoas que estavam na mesma missão que eu, porém com outros fins. Provavelmente meu objetivo era o menos nobre dali, quase certeza, mas não me importava, ouro é tudo que me importa na verdade. Claro que conhecer essas pessoas significa algo, talvez algo maior do que meu objetivo. Amizade, confiança, trabalho em equipe, nunca havia sido boa em nada disso. Bem, nunca havia tentado, sempre achei besteira e preferi ficar sozinha, pelo menos não precisava dividir o roubo com ninguém. Mas agora, pela primeira vez, notei que trabalho em grupo não é tão ruim quanto parecia, e não deveria mais temer me aproximar de alguém, mas essa parte é mais complicada e vou deixar para outra ocasião.

Fiquei um pouco afastada dos outros, como já estava acostumada, e esperei a caminhada começar. Sabia que alguém poderia querer falar, Lyanna e Alyssa talvez quisessem nos dar instruções sobre os Caçadores ou algo do tipo, então apenas fiquei observando todos, calmamente.

Enquanto estava perdida em meus pensamentos sobre o sonho que tive mais cedo Killian se aproximou, falando algo que só fui entender depois de levantar a sobrancelha e analisar a frase, então fiz um movimento com a mão, batendo uma mão na outra e olhei para o jovem a minha frente.

-Desculpe, estava meio perdida nos pensamentos, mas isso não importa mais. - Cruzei os braços. - Acredite rapaz, estou tão desinformada quanto você, só sei que o chefe dos Caçadores querem ver Lyanna e Alyssa. Não sei o por que nem pra quê esse cara as chamou, mas já estava na hora de sairmos dessa cabana e ir em direção a missão.

Olhei em direção ao rio e ajeitei meu cabelo, Lyanna parecia estar demorando para terminar os últimos caprichos para a viagem. Realmente estava curiosa para saber o que o Chefe dos Caçadores queria com as meninas, mas eu não era ninguém tão importante para saber algo assim. Olhei para o ladrãozinho e então para as pessoas atrás dele.

-E o senhor? O que achou das pessoas daqui? São bem diferentes, não acha? - Observei serenamente aquele grupo totalmente inesperado, e sentia que algo diferente eles carregavam.

Esperei a resposta do rapaz, mas se Lyanna se pronuncia-se tornaria minha atenção para suas palavras.

Terminando de mentalizar os nossos próximos passos, tornei a olhar o restante do grupo. Estavam todos prontos. Conversavam entre si, e embora eu não quisesse interrompê-los, o tempo é escasso demais para ficarmos parados. Além do mais, terão uma viagem inteira para continuar com a falação. Fiz um sinal com a mão, chamando-os a atenção. Quando todos estavam perto o suficiente, falei:

— Escutem com atenção, pois só direi uma vez. — avisei, dando um suspiro e colocando as mãos na cintura — Iremos até uma sede dos Caçadores, na capital de Aceles. Chegaremos lá atravessando uma passagem acima do Lado Quente, pelas montanhas, que pára bem próxima da cidade. Se não demorarmos, poderemos alcançar nosso destino em dois dias. Explicarei mais algumas coisas no término da viagem, mas por agora, partiremos. — finalizei, seguindo em direção à entrada da passagem, presumindo que estivessem me seguindo.